Serra da Estrela

A Tosquia

 

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A tosquia, corte do pelo das ovelhas, era uma operação anual que decorria na primavera, entre fins de maio e meados de junho, numa altura, portanto, em que os gados da transumância regressavam já da Idanha, Paúl ou de outras terras da Beira Baixa. Normalmente tinha-se o cuidado de procurar uma boa fase da lua. O quarto-crescente e a lua-cheia eram consideradas fases propícias. O local apropriado era também objeto de cuidados especiais e podiam chegar ao extremo de ter que ser purificado com fumo de alecrim bento, cruzes e rezas aos Santos protetores:

 “Que a Virgem Maria abençoe a tosquia.

E o Santo Sacramento nos mande bom vento

Vai, Satanás, que a lua não é tua”.

No dia aprazado o tosquiador tinha que madrugar mais que o gado e do que os outros pastores e devia receber no campo os animais com um ar mais composto. A tosquia era sempre precedida de uma invocação do género da anterior com os pastores desbarretados. Terminada a prece e ao primeiro sinal da tesoura, iniciavam uma série de cantilenas, focando os diferentes aspetos da tosquia, ou implorando o auxílio dos santos populares. A tosquia fazia-se por ordem de idades. A primeira tesourada era dada no lombo. Depois da cabeça até ao rabo, sempre torneando o corpo do animal. Às ovelhas de estimação deixava-se a ponta do rabo por tosquiar. Terminada a tosquia, o “manajeiro”, de cabeça descoberta chamava as ovelhas uma por uma e no fim, com gesto rasgado, traçava uma cruz sobre o rebanho. Depois, enquanto ele se purificava com água de malvas ou trevo, os outros pastores procediam à marcação das ovelhas. Havia dois tipos de sinais diferentes: as marcas e as siglas; as primeiras que eram simples impressões no lombo ou no quadril, a pez, como que representavam o sinete do pastor sobre o seu gado. As siglas eram pequenas incisões a golpes de tesoura nas orelhas do animal. As mais vulgares eram em ramal, espontada, farpa, porta, forcalha ou forquilha, aguçada, moça e cambo. Finalmente, penduravam uma campainha no pescoço de cada rês.

O velo proveniente das diversas partes do corpo da ovelha era separado, formando a lã branca ou saragoça (castanha). A lã, depois, ou era vendida diretamente, para a indústria, ou era lavada manualmente ou nos lavadouros mecânicos, reservando cada pastor para si a quantidade considerada necessária para mandar deitar “maranhas”capaz de assegurar o vestuário da sua família para um ano inteiro. Com a lavagem removia-se a lã suja, a terra e outras impurezas que podiam ser superiores a mais de metade do seu peso, extraindo o excesso de gordura natural, que podia ser aproveitada para produtos de cosmética (lanolina).

A próxima “volta da lã” era a cardação. Para formar o fio para tecido penteado, a lã era aberta numa carda e depois de formar uma mecha de fibras, era penteada, o que lhe retirava as fibras mais curtas e as impurezas vegetais. Para formar o fio para tecido cardado, as lãs utilizadas neste processo, normalmente de fibras mais curtas, eram abertas e misturadas na preparação dos lotes, entrando depois nas cardas, onde eram eliminadas grande parte das impurezas vegetais e formadas as mechas.

O processo de fiação artesanal consistia em vários passos. Puxadas as fibras da lã, estas ficavam paralelas umas às outras. Torcendo-as, obtinha-se um fio resistente. Para fiar, inventou a mulher a roca, enrolando a lã no topo abaulado de uma cana, com três palmos de comprimento. Entalava-a no cós da saia, debaixo do braço esquerdo e, com o indicador e o polegar da mão esquerda, puxava as fibras, molhava-as com os lábios e torcia-as com o fuso, que rodava suspenso, entre os dedos ágeis da mão direita. Parava um poucochinho e enrolava o fio formado no próprio fuso. Um fuso cheio fazia a maçaroca que depois tinha de passar à dobadoira, para fazer a meada.

No processo de fiação mecânica, as mechas provenientes da cardação eram estiradas e torcidas em máquinas, dando origem ao fio penteado ou cardado. Este último fio era utilizado no trabalho artesanal.

As fibras, os fios ou mesmo os tecidos, eram submetidos a processos de tingimento específico, para cada estado do processo fabril, de que resultavam os mais variados coloridos.

O fio depois de tinto e seco era acondicionado sobre as mais diversas formas, sendo a mais corrente a de cone – bobinagem, ficando assim em condições de ser utilizado.

A urdição dispunha os fios de diversas cores e ou qualidades, de forma adequada ao debuxo que se pretendia, formando a teia ou urdido que depois de enrolado no órgão, iria estabelecer o tear.

Os primeiros fios que o homem fez devem ter sido grossos, permitindo tecer com os dedos, tal como há muito, entrelaçava ramos e vimes, para formar a cabana, o cesto ou a rede de pesca. A repetição e a observação deram a ideia e a destreza, para melhor fazer. Entre dois paus, fixados horizontalmente no solo, corria-se de um lado para o outro do fio, esticando-se ao máximo. Ficava, assim, feita a teia. Passava-se depois, à mão, entre os fios da teia, os da trama e apertava-se. Assim, aperfeiçoando o método, nasceu o tear. Foi depois de tecer com os dedos que o homem criou o tear de pau, elevando na teia um fio em cada dois, para passar o fio da trama. E inventou um pente para “serrar” a trama. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar o fio em forte tecido. Inventada a lançadeira rápida que não era mais guiada à mão, através dos fios da teia, mas que era atirada em vai e vem, tecia-se com o dobro da rapidez. Os fios da teia com os da trama cruzavam-se no tear de acordo com o determinado no debuxo. Assim se produzia o tecido em “xerga” isto é, não acabado.

O acabamento era o conjunto de operações desde a lavagem ao apisoamento, operação típica do tecido cardado que no pisão feltra as fibras de lã (únicas que têm tal característica), dando consistência e toque mais macio ao tecido. Tal operação podia ser levada ao extremo de tornar quase impermeável o tecido de lã, como no caso das capas de pastor. Após a operação de enfestar ou enrolar era obtido o produto final.

Bibliografia

Fragmentos do Passado – Manteigas nas décadas de 1950 e de 1960, Nataniel Rosa, 2016